Investigadores reconstituem a história da destruição de Vila Franca do Campo 484 anos depois da tragédia
Passaram-se 484 anos desde que Vila Franca do Campo, então capital dos Açores, foi totalmente subvertida. Aconteceu a 22 de Outubro de 1522 a maior catástrofe natural da história insular açoriana e a segunda maior de Portugal, a qual aqui lembramos e ilustramos com trechos da obra Saudades da Terra que consagrou o brilhante cronista Gaspar Frutuoso. Memórias para reflectir.
No dia 22 de Outubro de 1522, segunda-feira, “...menos de duas horas ante manhã, estando o céu estrelado e claro, sem aparecer nuvem alguma, se sentiu em toda a ilha um grandíssimo e espantoso tremor de terra, durou por espaço d’um credo, em que parecia que os elementos, fogo, ar e água, pelejavam no centro d’ela, fazendo-a dar grandes abalos, com roncos e movimentos horrendos, como ondas de mar furioso, parecendo a todos os moradores da ilha, que se virava o centro d’ela para cima e que o céu caia, e acabando o espaço do Credo ou de um Pater Noster e Ave Maria a todo o mais, e ainda não foi tanto, tornou outra vez a tremer mais brandamente outro tanto.”. Foram ainda algumas réplicas “A horas de terça no mesmo dia tornou a muito rijo por pouco espaço. Ao meio-dia tremeu outra vez…” (Gaspar Frutuoso).
O terramoto, estudado pela investigadora Dina Silveira, do Centro de Vulcanologia e Avaliação de Riscos Geológicos (CVARG), deverá ter tido epicentro em terra a NNW de Vila Franca do Campo e terá atingido intensidade máxima de grau X (Escala Macrossísmica Europeia 98).
Este sismo desencadeou por grande parte da ilha inúmeros movimentos de vertente, tendo sido mais afectadas as áreas de Vila Franca do Campo, Ponta Garça, Furnas, Fenais da Maia (?Fenais da Ajuda?) e Maia. A este propósito, Gaspar Frutuoso escreveu “... não houve grota nenhuma, assim da parte sul como do nordeste, por onde não correcem ribeiras de lodo.”
O maior e mais catastrófico destes movimentos de vertente teve origem num monte sobranceiro a Vila Franca do Campo, então chamado Monte do Rabaçal. A lama cobriu muitas ruínas de casas afectadas pelo sismo, derrubando muitas outras, obstruiu caminhos, destruiu terras de cultivo matando pessoas e animais, muitas soterradas enquanto fugiam de casa com receio das réplicas. “Da ribeira para a parte do Oriente, onde estava a Vila, tudo foi assolado e os moradores todos quase mortos. Somente na mesma ribeira, para o ponente, escaparam algumas casas, delas caídas, onde ficaram vivas até 70 pessoas pouco mais ou menos, as quais todas começaram a dar grandes gritos, chamaram uns por Deus e outros por Santa Maria...”.
Gaspar Frutuoso refere ainda que essa enorme massa que varreu a vila por completo, ao entrar no oceano formou um pequeno tsunami, destruindo algumas embarcações que se encontravam ancoradas junto do ilhéu de Vila Franca: “…havia no porto então quatro ou cinco navios abrigados no ilhéu para partirem para Portugal, o que foi causa de morrer mais gente alli onde se ajuntava de toda a ilha para fazer aquela viagem.”
Rui Marques, investigador do CVARG, estudou recentemente em detalhe os depósitos dos movimentos de vertente gerados em resultado do terramoto de 1522 e reconstituiu a catástrofe. Para este autor, a fonte principal do grande movimento de vertente, do tipo escoada de detritos, situou-se a NW de Vila Franca do Campo, a sul do Pico da Cruz, onde é nítido o sector de rotura, esventrado para SSE. Imediatamente após o sismo, aproximadamente 6,75 milhões de metros cúbicos de material foram mobilizados da vertente e canalizados pela Ribeira da Mãe d’Água a uma velocidade de aproximadamente 1-3 m/s, espraiando-se sobre a vila. De acordo com o investigador, um segundo movimento de vertente igualmente importante terá ocorrido a jusante da Ribeira Seca tendo o material sido canalizado pela ribeira até ao mar.
Depois de coberta a vila por uma extensa e volumosa quantidade de lama “…e sendo já dia claro, se ajuntaram algumas pessoas, que viviam pelos montes e nas quintas, e os que ficaram vivos no arrabalde, espantados todos dos grandes tremores e estrondos que ouviram; e vendo a vila no estado em que se encontrava pasmavam. Muitas pessoas de toda a ilha, que ali tinham as suas casas, parentes e amigos e conhecidos, mandaram cada um cavar onde lhes doía, uns para tirar os corpos dos mortos, outros para ver se achavam dinheiro e alfaias, que tinham em suas casas, outros para fazer o mesmo aos corpos e fazenda de seus parentes e conhecidos. E assim se cavava em muitas partes da Villa juntamente cada dia, e uns achavam mortos pelas ruas e outros em suas casas e leitos, entre as quais achavam alguns vivos.” (Gaspar Frutuoso).
“Em uma só triste noite foram acabadas muitas vidas e ficou tudo tão coberto, que nem nobres casas, nem altos edifícios, nem sumptuosos templos, nem nobres e vulgares pessoas pela manhã apareceram, ficando tudo raso e chão, sem sinal nem mostra onde vila estivesse.” (Gaspar Frutuoso).
E assim foi destruída Vila Franca do Campo. No total terão perdido a vida entre 3000 e 5000 pessoas, praticamente toda a população que ali se encontrava. No palco desta catástrofe crescem hoje lindíssimas plantações e luxuriantes pastagens verdes que lhe dão cor, mascarando o local onde outrora milhares de pessoas pereceram. Assim aconteceu a maior catástrofe natural da história insular e a segunda maior do pais, logo atrás do terramoto de 1755 que destruiu Lisboa e matou cerca de 30.000 pessoas.